23/01/2010

A bomba A


Tomiko Matsumoto
Testemunho feito a mim hoje, transcrito na íntegra.

Eu tinha 13 anos naquela data. Eu estava a 1,4 km do epicentro. Estava chegando na escola. Mas antes de contar o que aconteceu naquele dia 6 de agosto de 1945, eu vou contar um pouco como era a vida no Japão durante a guerra. A quantidade de arroz era cada vez mais reduzida. O governo distribuía às famílias cupons, que poderiam ser trocados por arroz. Também a roupa era dada por esses carnês. Até a roupa íntima. Por causa da falta de comida, até plantávamos arroz no pátio da escola.

Nós íamos à escola, mas não havia mais aulas nem fins de semana de folga. Nós fazíamos treinamentos de guerra e também ajudávamos a demolir casas e reconstruir abrigos. Faziam isso tanto as crianças do primário como do ginásio. Era um trabalho muito pesado. Até então, Hiroshima não tinha recebido nenhum ataque aéreo durante a guerra. Todas as outras grandes cidades do Japão tinham sido bombardeadas. Como a cidade sempre teve uma base militar e o porto foi local de partida da marinha, pensávamos que a presença deles protegia a cidade.

No dia 6 de agosto, eu terminei de me aprontar para o colégio e estava saindo de casa. Eu morava a cerca de 600 metros da ponte em forma de T (local onde a bomba deveria ser jogada). Todos os dias eu passava por aquela ponte para ir à escola. Na época, quem era mais saudável, não podia pegar ônibus ou metrô. Tinha de ir a pé. Naquele dia eu estava atrasada para encontrar meus outros 319 colegas na escola. Às 8h15, exatamente quando eu lá cheguei, eu passava ao lado do grupo, que estava com o professor, e aconteceu uma grande iluminação. Eu tive a impressão de que o Sol caía sobre nós. Depois veio um vento muito forte.

Fiquei debaixo dos escombros da escola. Quando eu consegui sair dali, estava tudo escuro. Eu não achava ninguém. Eu fiquei bastante apreensiva porque não achava minhas colegas. Para todas as direções que eu olhava, eu via focos de incêndio.

Eu decidi sair rapidamente pelo portão da escola. As casas ao lado que antes existiam enfileiradas estavam destroçadas. Eu não via ninguém e não sabia para que lado ir. Então pensei em ir para a montanha Hidiana, porque sabia que lá havia abrigos antiaéreos.

No caminho, sob os escombros ao meu redor, eu ouvia vários tipos de vozes. Eu ouvia: “socorro”, gemidos, crianças chorando. Consegui chegar à ponte Tsurumi. Quando cheguei lá, o céu ficou mais claro e eu consegui ver alguma coisa. Havia pessoas nuas, com a pele descascando, o rosto inchado. Não se percebia se eram homens ou mulheres. Aí eu pensei em ver como eu estava.

Coloquei a mão na minha cabeça e senti meu cabelo cheio de cacos. Desci a mão para o meu pescoço e parecia que um pedaço da minha pele caíra. Nas pontas dos meus dedos parecia estar toda a pele das minhas mãos. Como recebi a radiação de costas, parecia que havia uma grande pelanca na parte de trás. As minhas roupas eram como trapos. Nisso eu me agachei, com medo de ser queimada pelo fogo que estava em toda parte.

Vi muitas pessoas pulando no rio. Com a luz, o Sol começava a queimar a pele das pessoas. Eu pensei em saltar também no rio, mas era muito alto onde eu estava. Continuei andando pela ponte. As pessoas que passavam por mim pareciam um grupo de monstros. No rio, eram muitos os corpos levados pela correnteza.

Vendo tudo isso, resolvi que ia continuar até subir à montanha, onde havia buracos de refúgio. Entrei em um e lá dentro era um inferno. Gemidos e gritos por todos os lados. Vi uma pessoa que tentava colocar o olho de volta no lugar. Havia gente também com as tripas de fora. Ninguém sabia ainda o que tinha ocorrido.

Depois da hora do almoço, finalmente chegou um trator militar. Eu consegui entrar nele e fui para Fuchucho, que é bem longe. Nesse local, encontrei cinco colegas e um professor da minha escola. As minhas colegas estavam com os rostos manchados e não enxergavam. Eu as reconheci apenas pela voz. Lá deitávamos sobre colchonetes de palha. Uma amiga minha gemia sem parar e faleceu ao meu lado. Transportaram-na sobre o colchão até o pátio, onde havia uma montanha de corpos mortos.

No fim do dia, eu recebi um tratamento. Mas como não há remédio para o que tínhamos, eles simplesmente colocavam óleo de soja sobre as queimaduras. Nos dias seguintes, as quatro outras colegas e o professor morreram. Eu sempre chorava. E depois de algum dia, o quarto onde eu estava ficou muito desagradável.

Havia muitos insetos onde eu estava. Eles colocavam ovos sobre as queimaduras. Depois esses ovos viram uns vermes que ficam andando pelo seu corpo. Eu tinha muita febre. Mas depois de vários dias, alguém do meu bairro veio e cuidou de mim. Tirou os vermes do meu corpo. Essa pessoa disse que era impossível retornar a Hiroshima. Aí eu pensei em minha família. Mas eu não podia fazer nada.

Minha avó estava no interior. Era bem longe, mas essa pessoa do meu bairro me levou até lá. Lá encontrei uma tia, minha vó e muitos outros refugiados. Não havia mais gaze para todos. A minha avó raspava pepino e colocava esse caldo sobre as queimaduras. Um dia, depois de eu perguntar, minha avó me trouxe uma caixa onde estavam os ossos de minha mãe e do meu irmãozinho de 3 anos. O meu outro irmão de 5 anos tinha saído para brincar e nunca foi encontrado.

O meu pai estava em outra cidade, onde ele recebeu a chuva negra. Mesmo assim, ele foi procurar pela família e me encontrou na minha avó. Quando ele chegou, ele não conseguiu mais se levantar da cama. As minhas queimaduras, graças ao pepino, melhoraram. Mas ficaram quelóides. A minha unha fica escura e sempre cai.

Meu pai aos poucos recuperou um pouco da saúde e voltamos para Hiroshima, onde fizemos um barraco. Ele era suficiente apenas para nos proteger da chuva. Isso já era novembro e ele ainda não andava. A cidade estava destruída. Eu pensava que tipo de vida nós iríamos ter. Meu pai com o tempo não se mexia mais. A distribuição do arroz atrasava e nós comíamos caules de batata e beterraba, apesar das previsões de que nunca mais surgiriam plantações novamente na cidade.

Terminou a guerra, mas a vida não melhorou. No ano seguinte, eu voltei à escola, mas a minha classe era muito pequena. Todas as alunas tinham seqüelas. Nós nos perguntávamos por quanto tempo mais viveríamos. Eu fui levada para fazer testes por um comitê de estudos dos afetados pela bomba. Nós éramos mais uma vez cobaias. Ninguém nos tratou.

Meu pai dizia: quero morrer! Em maio de 47, ele se suicidou.

Em 49, eu me formei no ginásio, mas não encontrava emprego. Mesmo com o calor, eu sempre usava manga comprida. Depois de dois anos, eu consegui trabalhar em uma doceria, mas fiquei lá só 6 meses. Porque um dia eu tossi e saiu sangue. Eu estava com uma gastrite aguda. Fui ao hospital. Eu tinha doença física e espiritual. Tirei um terço do estômago e fiz muita transfusão, onde peguei uma doença sanguinea.

Ainda hoje, com a mão direita, eu só consigo escrever e segurar o hashi. Eu uso facas e tesouras com a esquerda. É incômodo, mas eu ainda vivo.

No hospital, eu sempre procurava a morte, mas com o tratamento médico e com o apoio da minha avó, eu segui vivendo. Mas perdi o emprego. Quando eu me recuperei da saúde, minha avó morreu. Com isso, todos os meus parentes morreram. O sentimento que tenho é de que a guerra é muito triste. Não podemos fazer guerras. Eu levei 50 anos até consegui contar essa experiência. Até então, falar ou ouvir sobre a bomba era muito triste.

A bomba atômica não destrói só os seres humanos, mas tudo que tem vida. Nunca mais podemos usá-la. A radiação retida também influencia a vida futura. Ainda muitas pessoas continuam morrendo por causa dela. A minha força é muito pequena.

Eu preciso transmitir o que passei. Acho que é por isso que ainda estou viva. Meu trabalho e minha função são evitar novas bombas assim no mundo. Hiroshima tem obrigação de se unir ao mundo pela paz. Jovens, não se esqueçam de Hiroshima, Nagasaki e Okinawa! Mantenham este planeta.

5 comentários:

Juliana Mattoni disse...

sem palavras

Pedro Henrique França disse...

foda, muito foda. que pena não poder ter a hipótese de sonhar com a paz absoluta. graças ao excesso de ganância e um fanatismo relgioso, o qual não consigo aceitar.

fê vio disse...

lágrimas,é tudo que posso dizer.

Unknown disse...

\Velho. show de bola. É isso, buscar a humanidade e o drama sempre, não nos deixar prender pelo brilho de novas tecnologias. O ser humano é mais valioso do que qualquer riqueza material existente neste planetinha que vivemos.
Parabéns

AllBags Guesthouse - Ilha Grande disse...

fico arrepiada de imaginar essa senhora! e fico muito triste de saber q foram homens q provocaram isso tudo! Meu Deus!!!